Ciberespaço, diplomacia e autonomia brasileira
Autor: *Guilherme Frizzera
A visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China, em maio de 2025, não é apenas mais um gesto diplomático. Marca a consolidação de uma estratégia: o Brasil quer deixar de ser expectador nas disputas centrais do século XXI. O não-alinhamento ativo, conceito que orienta a atual política externa, não significa neutralidade nem equidistância. É, antes, uma tentativa de reposicionar o país como ator autônomo, capaz de negociar com potências a partir de seus próprios interesses.
Essa postura exige abandonar a lógica binária herdada da Guerra Fria e reconhecer a complexidade de um mundo multipolar e assimétrico. Se neste momento é a China quem oferece mais espaço para o Brasil participar de cadeias tecnológicas, ampliar investimentos em energia e desenvolver infraestrutura digital, cabe à diplomacia brasileira aproveitar essa brecha sem temor de desagradar os Estados Unidos. Autonomia não se constrói com gestos simbólicos, mas com articulação concreta.
Em 2023, ainda no início do terceiro mandato de Lula, os dois países haviam firmado mais de 40 acordos em áreas diversas, dando os primeiros sinais de uma nova fase na relação bilateral. A visita de 2025 aprofunda essa agenda, agora voltada a temas sensíveis como semicondutores, energias renováveis, inteligência artificial e governança do ciberespaço. Entre os novos projetos estão a cooperação para a produção de satélites com monitoramento ambiental de longo alcance e a criação de um centro binacional de pesquisa em chips.
Para a China, essas parcerias também respondem a desafios estratégicos. Apesar dos avanços no setor digital, Pequim ainda depende de componentes controlados por empresas ocidentais. Formar pontes com países como o Brasil ajuda a reduzir vulnerabilidades e a diversificar suas apostas tecnológicas. Não se trata de solidariedade entre países em desenvolvimento, mas de interesses convergentes. A periferia, neste caso, é também zona de disputa geopolítica.
Esse é o ponto onde o Brasil precisa ter clareza. Os governos Lula, ao orientarem os investimentos estatais na criação das chamadas “campeãs nacionais”, priorizaram cadeias produtivas tradicionais — setores com alto potencial de geração de emprego e crescimento econômico, mas que não inseriram o país nas cadeias globais de produção tecnológica e digital. Agora, o desafio é atenuar esse atraso científico e produtivo em uma realidade onde a inovação avança de forma vertiginosa e as parcerias ainda são restritas. O ambiente do ciberespaço remete à lógica do início da corrida espacial, em que potências buscavam alcançar posições de vanguarda por meios próprios e com pouca disposição para dividir conhecimento ou recursos. Dentro desse cenário, o Brasil possui uma vantagem estratégica no contexto dos BRICS: é o único que mantém diálogo com todos os polos de poder, sem alimentar conflitos ou disputas abertas. Trata-se de uma posição privilegiada, que não pode ser desperdiçada e que deve ser parte central da aplicação do não-alinhamento ativo.
Entre os países que formam o acrônimo dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), o Brasil tem uma virtude e uma deficiência no ambiente digital. Rússia e China se encontram na vanguarda da inovação tecnológica, cada uma orientada por lógicas distintas: a Rússia prioriza sua infraestrutura militar e a utilização ofensiva de ferramentas cibernéticas, incluindo ações de interferência digital em contextos estrangeiros. A China, por sua vez, lidera o desenvolvimento de tecnologias de vigilância, comunicação e inteligência artificial, moldando os padrões de controle digital no século XXI. A Índia, embora em posição inferior a essas duas potências, busca se tornar uma referência internacional em tecnologias de informação, com forte apoio estatal e do setor privado. O Brasil, por outro lado, insere-se nesse cenário como um Estado que tem apostado em sua capacidade de desenvolver marcos regulatórios para o ciberespaço. Esse papel também é fundamental, já que a produção e inovação nesse campo exigem investimentos vultosos, mas também uma governança ágil. O desafio brasileiro, contudo, é ainda maior, pois as transformações digitais ocorrem com velocidade exponencial e o país começa a corrida atrasado.
O Brasil chega atrasado ao verdadeiro jogo contemporâneo. Mas chega. O não-alinhamento ativo é, neste contexto, mais do que uma diretriz diplomática. Trata-se de uma estratégia de defesa da soberania em uma ordem internacional em transformação, onde o multilateralismo tradicional e as organizações internacionais estão sendo questionados, esvaziados e, em alguns casos, substituídos por alianças ad hoc entre grandes potências. Manter-se como interlocutor múltiplo, com autonomia, é preservar espaço de decisão em meio ao rearranjo da ordem global.
*Guilherme Frizzera é Doutor em Relações Internacionais e coordenador do curso de Relações Internacionais da Uninter.
Autor: *Guilherme Frizzera